quinta-feira, 26 de janeiro de 2012

De tudo fica um pouco

O doutor da alegria, vestido de piada, insistiu. Beija meu nariz, beija. Todos caíram na risada. Até Dona Irene, senhora séria, do tipo de birote. Mal acreditavam que estavam ali novamente. Há pouco Camila havia saído do hospital, devido à um mau súbito que assim como veio se escafedeu em alguns meses, tempo que não foi suficiente para que se familiarizassem com o hospital. Pelo contrário, ao acordar, sempre pensavam que poderiam ver pela janela as lindas flores do sítio. Ela nunca vira a mãe tão abatida. Irene, no alto de sua fortaleza, gerenciou família, hospital e médicos, enquanto sua filha estava doente. Agora, filha pajeava mãe. O mantra que Irene repetia para si naquela época, ecoou na mente de Camila todos os dias. “Depois do mau tempo, a rosa nasce”. O grande e vermelho nariz de borracha foi a deixa para que todos extravasassem. Naquele momento, estavam livres das preocupações, àquelas que se alimentam daqueles que transitam nos quartos dos hospitais. O riso foi o início da recuperação de Camila e talvez fosse o de sua mãe.
A enfermidade serviu para aproximar mãe e filha. Quando não estavam juntas no sítio, estavam na sala de quimioterapia ou no consultório médico. Sim, o grande “C”, que não escolhe, nem privilegia ninguém, acomodou-se sorrateiramente na vida de Irene. Fazia oito meses que estavam nessa rotina. Oito meses que Irene estava na casa da filha, oito meses que em todo fim de semana a família se reunia, oito meses de reconhecimento. Reconheceu-se o tudo que Irene havia deixado na vida de seus filhos. Foi nesse período que Irene e Camila descobriram a importância do laço invisível que surge no nascimento da vida. Irene recebeu 32 visitas dos filhos, 16 camisolas de algodão, que combinavam com a fronha de seu travesseiro, 8 x 10 “eu te amo” dos netos. Surpreendeu-se ao ver a semente que havia plantado e regado com tanto carinho, brotar, crescer e florescer, ultrapassando gerações – sorte de poucos, que na velhice, ficam à margem da sociedade, que diz que deu, diz que dá, diz que deus-dará. Mas mais surpresa estava Camila. Sua mãe não indagava ou maldizia as circunstâncias, muito menos o arquiteto de tamanho destino. Deus sabe o que faz, dizia Irene. E enquanto fez, Camila descobriu quanto sua mania de arrumação, a força dos netos ao verem sua avó sofrer, o carinho dos sobrinhos ao relembrarem bons momentos, retomavam àquela que lhe havia colocado no mundo. Em oito meses Irene percebeu o quanto era especial e Camila o quanto aquele momento era precioso. A fortaleza que Irene havia formado, cada pedra erguida em cada mau tempo, estava ruindo e só sobrou uma única rosa.
As enfermeiras disputavam à tapa quem estaria com Irene e faziam tudo para que “Dona Irene” não se afligisse com a cirurgia. Ela agradecia acariciando gentilmente o rosto de suas cuidadoras. Alívio. Foi o que sentiu Camila, ao saber da decisão médica. A cirurgia resolveria parte do cotidiano repetitivo e exaustivo que só os enfermos e aqueles que convivem com eles experimentam, mas a espinha arrepiava. Sua mãe estava tão fraca... então lembrou: Deus sabe o que faz. No fim de semana da cirurgia toda família se reuniu novamente dispostos a amanhecer no hospital. Amanheceram. A cirurgia aconteceu pela metade. Os médicos encontraram outro obstáculo e decidiram não intervir. Anoiteceram. Camila se assustou ao ver a mãe ainda mais debilitada, no entanto, o inusitado bom humor de Irene a confortou. Olha minha situação, filha, falou Irene, com os cabelos cortados e sem as dentaduras - o grande “C” havia dado as caras. Quando viu seus netos, expressou satisfação e até soltou “ressuscitou?” para aqueles que moravam longe. Três dias. Foi o tempo para que a música mudasse de tom. O tempo da morte não faz hora, nem vela. De dia a alma vai, à tarde o corpo se despede e à noite tudo finda à sete palmos. Em três dias Irene já não interagia com seus familiares ou se orgulhava de seu único neto homem, jóia sempre lembrada de sua coleção, para aborrecimento das outras netas. Com dificuldades para respirar, balbuciava algumas palavras e ocasionalmente dirigia seu olhar para Camila. Guerreira, Irene não desistiria sem lutar, e Camila sabia disso. Ela sabia também que o olhar não era só de gratidão, mas representava toda a força daquele laço invisível. Para que deixá-la valsando quando a eternidade lhe parecia muito melhor? Pensou Camila. Deus sabe o que faz. Com um nó no peito, com a cara dura, a filha se sentiu na obrigação de aliviar o esforço da mãe e estender a bandeira branca. “Deus enxugará todas as nossas lágrimas, mãe”. Irene suspirou, não antes de ver suas irmãs e sorrir para a caçula, a que tinha mais sua atenção. Os médicos a sedaram aos poucos, o soro correu pelo equipamento e a cada gota seus olhos esmoreceram. Não era mais Irene que estava ali, mas um corpo, uma matéria. Não era seu bom humor, sua força, sua ranhetice. Antes que sua essência sumisse, a família se reuniu em torno da cama e agradeceu à matriarca tudo que haviam aprendido, todo amor, toda correção. Uma última vez unida, a família fez uma oração. Deus sabe o que faz. Com o pouco de vida que lhe restava, Irene esbravejou: Amém. Camila, segurando suas mãos, colocou a cabeça em seu peito e derramou uma única lágrima. Muito ficou deste pó.
Um abraço!

segunda-feira, 23 de janeiro de 2012

Sem Janta, por Jéssica Kruck

 












  Esse relato pode parecer desnecessariamente dramático, mas levando em consideração seu teor ficcional, talvez os arrombos de mal gosto estilístico sejam relevados. Tamanho arrego logo na introdução se dá pela falta de experiência que julgo ter sobre o quesito janta. Lá pelas tantas da minha infância em cidade cosmopolita, eu bem lembro de jantar rápido pra dormir e talvez encontrar aqueles que diziam ser meus pais.    Pelo menos eram eles que pagavam a escola e pra quem eu entregava as lembrancinhas de datas comemorativas.  Mais pra frente, numa experiência interiorana, sempre tinha algum parente pra jantar alguns dias da semana lá em casa. Era legal, daquele jeito familiar. Foi o período no qual mais vivi cercada de relacionamentos familiares e apadrinhamentos.  Agora, como nos últimos anos, as refeições noturnas não existem mais e as lembranças do que já chamei de janta seguem cada vez mais esparsas na memória. Ninguém se encontra, ninguém se toca e quase todos temem uma reunião à mesa. Essa virou enfeite, como há muito não se via naquela casa.  E aí quando eu fico encantada com a casa dos meus amigos e suas reuniões familiares, eles me perguntam: na sua casa não tem? E eu respondo: Janta? Não. Janta, não tem não.

Jéssica Kruck


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